segunda-feira, 9 de julho de 2018

As coisas imóveis

Tudo hoje tem um gosto levinho de luto. Um véu nublado pra enfeitar o dia, pra suavizar o contraste da luz dura. A luz permanece como um sopro, um sorriso que não tem certeza se quer se fazer. Mas tudo ainda é melancólico e calmo. As portas e janelas paradas, os prédios quietos, as cadeiras nos bares imóveis e previsíveis, como são as cadeiras. O vento que passa parece querer passar despercebido, menos pras folhas secas no chão - faz um carinho nelas, algumas dão cambalhota. Esse vislumbre de alegria alivia.
Todas as pessoas parecem ainda estar dormindo, como eu, elas parecem estar dormindo e trabalhando o sono dos dias cinzas. Subo as escadas para chegar a sua rua e dizer que hoje eu quero ficar do lado de fora. Hoje eu queria que ficássemos na rua e víssemos o dia, o cinza, as folhas mexendo, o vento escondido e as coisas imóveis. Eu subi as escadas pensando que assim que saíssemos da sua casa ia ser um dia que eu me lembraria pelo menos nos próximos vinte anos, de ver seu rosto esquecido compondo a rua esquecida. Pensei que talvez ficássemos em silêncio em alguns instantes e ia achar tudo muito bonito porque ia parecer sem querer, uma beleza acidental. Eu queria sentar no meio fio, olhar pra você, olhar pras coisas e pessoas dormidas com você e acordar. Acordar e te dizer o que eu via. Acordada junto com você.
Mas quando eu cheguei na sua casa eu quis ir ao banheiro, acabei deitando na sua cama e caí no sono. Acordei e já era noite.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Excesso

Só a poesia tem espaço suficiente pra solidão
Ela não cabe nas ações cotidianas
não cabe na cama
não cabe no sexo
Ela não cabe no meu desejo de cheirar a nuca
Ela não cabe de jeito nenhum
nesse lençol desbotado e frouxo
que não cumpre a sua função
e não forra a cama
E não cabe nessa sensação incômoda
do contato da pele direto no colchão

Aí a solidão não cabe no quarto
nem no computador do escritório
nem em livro, nem em lágrima
Ela quase coube nessa paisagem feia que vejo da minha janela:
o breu dos apartamentos estáticos às duas da manhã
essa luz amarela feia e turva dos postes

E desde então eu venho tentando encontrar lugar
na marra
pra essa solidão
mas acho que pra poema ruim
ela também excede de tamanho.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O resto

Nós crescemos e temos filhos para isso; para os vestirmos com vestidos lindos quando são crianças e eles viverem a humanização da beleza diante de nós; o frescor da inocência, a alegria desmedida da não consciência, para depois eles crescerem e verem seus próprios vestidos antigos, meio tortos, perdurados no varal, num último resgate de prazer da sua mãe dessa lembrança da juventude colorida, pingando na sombra da tarde com algumas várias manchas amarelas de mofo. "Não lembro em que vida vivi nesse vestido, nesses vestidos tão coloridos" os filhos hão de falar em uma roupa majoritariamente escura, ou pelo menos foi meu caso, e flores vermelhas estampadas. E eu pensei que a vida é isso, ter um filho pra resgatar a beleza da vida, porque no momento em que minha mãe me mostrou os meus vestidos eu estava amarga dos enganos que a gente tem na vida, e ela tão feliz em me lembrar metade de mim vestida naquilo, mesmo comigo materializada e amarga, tão destacada em frente a ela, na cara dela. E eu pensei "talvez seja isso mesmo, o ciclo de fazer novas pequenas gentes que devem ficar rodopiando sob o sol num vestido colorido pra mostrar que alegria é uma ideia, e ela existe. O resto é resto; não é beleza."

domingo, 21 de janeiro de 2018

Fobia

Ele disse que, uma vez, sabia que faziam suco de maracujá dentro de casa antes de passar pela porta. Explicando que tinha um bom olfato. Eu não sei por quê essas coisas surgem de repente, essas lembranças aleatórias. Um cheiro de maracujá. Eu também não sei o que os olhos dele significam. A imagem, eu quero dizer. A imagem dos olhos. Do seu rosto. Quando surge, agora, é estranho, quase esqueço de como é. A imagem dele. Surge. Como um espectro. Tenho um pouco de medo, eu me sinto vigiada. Vigiada por uma presença que não existe. Como pode ele ocupar um espaço enorme aqui no agora só através da minha cabeça? Aqui? Não me conformo que ele mobilize meu presente, esses instantes, em que ele não se encontra fisicamente, só através dos meus pensamentos. É um fantasma. Não é mente, na verdade; é corpo.  Eu me sinto ocupada por alguém e ele vivencia meu corpo, agora. Ocupa dois lugares, existe materialmente em dois pontos: onde quer que ele esteja, que, sinceramente, não me interessa, e aqui, onde habito. Ele está aqui. Habita em mim. Existe em mim. Ocupa, junto comigo, todo o silêncio dessa madrugada.
 Antes de começar a falar, você vê, essa ideia me perturbava e eu gostaria de arrancar essa sensação perturbadora e lançá-la o mais longe que eu pudesse, apagar minha memória pra extinguir esse desconforto de dividir meu corpo, minha mente, minha existência com outro ser humano, preservar minha individualidade egoica intocada, minhas fronteiras seguras, torná-las o mais seguras e inatingíveis possíveis. Mas agora eu me sinto um pouco melhor. Admitindo que ainda sou eu. O outro em mim. O outro em mim ainda sou eu, as impressões de sua existência no meu espírito. Esse outro que habita em mim, agora, que existe através de mim, não é nada além da minha própria existência. Tudo que existe é a forma como sinto o mundo. Tudo que existe é a presença das coisas em mim. Sensorial e emocionalmente. Tudo além de mim não é nada. Eu soo patética com tantas repetições e tamanho didatismo, eu sei. Mas as vezes ser prolixo nos ajuda. A entender. Melhor, talvez. O que pensamos, sabe. Ou o que sentimos. O maracujá. Ele existia desde os últimos degraus, os últimos passos na escada. Que imbecilidade eu tô dizendo. Esquece isso.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Rapidez

Temo que, com os dias,
tranformes a imagem
que de mim criastes
Nas ranhuras discretas
Das minhas perturbações.

Temo que teus desejos
em tão pouco tempo sejam desfeitos
Por uma ansiedade que soluça
Juvenil e estúpida.

Temo mesmo conhecendo
a inutilidade do medo
Diante do risco dos encontros:
Não há receio que valha
A nefasta travessia do contato
visto perfeito e manso
E sustentado torto
Premeditando um naufrágio.

Cansada da resistência
Para proteger uma pele
inutilmente intacta
Hei de me jogar ao mar
E me ver boiar
Na beleza da entrega.