sábado, 26 de outubro de 2013

Amor de espírito

                Creio que sempre existira um texto em potencial, calado, adormecido pelos sentimentos egocêntricos e também pelos nobres sentimentos essencialmente humanos, por mais que negativos, como o medo. O orgulho, a obsessão, a raiva e a vaidade sempre serão as constantes irracionais e vergonhosas, por serem possíveis de reparo à menor reflexão. O medo, por sua vez, não. O medo detém uma beleza sutil e fluida, magistralmente introdutória das novas aventuras únicas, estonteantes, tão pessoais e importantes na vida de cada indivíduo. Faz fluir o princípio da atitude através da coragem, e torna a vida mais sensível ao pulsar do peito: inevitável adrenalina que corrompe nossa paz tão prazerosamente. Acompanha os corações, há tão pouco tempo ingênuos e inocentes – oh, coitados! –, às experiências mais incríveis da vida.
                Pois bem; este texto está se fazendo, não por sua autora estar em estado de mania, deleitosamente inspirada pelas musas; mas por perceber com demasiada clareza e alguma reflexão o fluxo dos acontecimentos, como em um ritual apolíneo. Não existe o estado patológico do amante inebriado da ilusão; não existe o pathos alterando completamente as funções dos meus sentidos, tornando-os unicamente emocionais. Existem meus sentidos como os são, existe o silêncio alegre e delicadamente atento da manhã.
                Foi sempre o ego o real podador da minha liberdade; liberdade para experimentar, para permitir, para amar. E a sinceridade, real descobridora de novos caminhos de verdade e manifestação da liberdade,  só poderia ser extremamente libertadora. Todos nossos receios e fobias impostos pelas nossas próprias inseguranças nos fazem impedir nossa própria liberdade e a alheia. Progressivamente, a segurança se estrutura em prol da experimentação da gama de diversidades da vida, e essas experiências só dão mais base à mesma, numa retroalimentação positiva.
                Amar pode ser um exercício muito intenso, mesmo que simples; muito sutil, mesmo que grandioso. Existe um amor em potencial que quando desprendido das amarras morais, convencionais e egocêntricas, se manifesta na mais tranquila felicidade. É um amor puro como a água nascente, no qual surge e toma o espaço que tem o dever de tomar; o espaço anteriormente ocupado pelos nossos medos existências, medos das instituições. Flexível como a água, toma a forma que quer... Escapa pelos dedos de um só indivíduo para se espalhar em gotículas pela terra, folha, pele, mundo. Transforma-se em tudo e não carece de nomeações, nomeações essas que carregam em si toda essa carga e peso cultural. Água livre que existe: não se cria, não se perde, se transforma a todo instante.
                Ensinaste-me a dar a água o espaço que possui, que deve ser todo. A cada instante que me renovo descubro caminhos para deixá-la ser como se é. Deixar que a água corra é não enclausurar o amor e o coração na cela abafada do ego.