quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

assunção

Decidi que me cortar era consideração com os demais;
pessoas que gosto,
respeito;
por isso, por elas,
decidi mutilar-me.

Era um pedaço de mim,
que há tão pouco tempo
tomara um carinho verdadeiramente sincero
carinho com gosto de força,
de convicção,
amor com gosto de aceitação.

Mas, afinal, já fizera isso tantas vezes
inúmeras vezes sentiu vergonha por não fazê-lo!
foram incontáveis os momentos
em que se sentira envergonhada
por não ter a responsabilidade de esconder-se,
por ter tido a negligência de revelar-se uma pessoa.

Por que tanta lamentação
por um processo pelo qual você já fora condicionada
desde os primeiros hormônios,
na época em que você não entendia nem nada
e já era obrigada
a engolir essa sua situação
a vesti-la como um espartilho apertado?

Deixei com que eu mesma vestisse-me a cela
e me puxassem pela crina.
Por que, apesar de sermos vítimas,
temos o desprazer de cultuar o deuses da repressão
e fazer nosso corpo de instrumento ritualístico deles
todos santas dias.

Raspei;
raspei meu corpo pelos buracos mentais da sociedade
raspei meu corpo pela ignorância áspera e pedregosa
(ai! como lamento e odeio aqueles que a subestimam...)

Essas lâminas
provedoras da higiene descartável
que tentam, e tentam
e tentam
remediar a minha natureza
esculpiram o meu corpo
a minha imagem
a minha alma
até tê-lo liso,
lindo,
macio,
perfeito,
desnudo de pelos.

A última coisa que eu estava
em toda minha vida
era nua.

Eu estava absolutamente moldada
em formas estreitas
esteticamente padronizadas.
Eu era sufocada
por não ser aceita;
eu estava enfaixada de pudor
medo
submissão e dependência.

Eles diziam "perfeita"
na ausência de todas nós.
Imploramos de joelhos sanguinolentos
(nunca as coxas)
pelo acolhimento
de quem não me reconhecia.

Não, na minha forma natural.
Não, tomando minhas próprias decisões.
Não, sendo igual.

Não agonizarei mais
correndo atrás
dessas peneiras que correm
para tapar os buracos
da verdade natural do meu corpo.

Deixarei a verdade crescer;
me permitirei transmutar essa força
que sempre tivemos durante todos esses séculos
em independência.

Deixarei minhas ideias crescerem
sem depilá-las;
deixarei a minha natureza tomar garra
e criar raízes fortes.